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Os 15 anos de Sofia

Jovem atendida no HRAC-USP quer ser odontopediatra e ajudar crianças com fissura labiopalatina                    

A jovem Sofia completou 15 anos em 14/12/2020. Foto: Guilherme Macedo / Arquivo pessoal

Vestido e bolo cenográficos, troca de sapato, a valsa: a festa de debutante é um rito de passagem importante e que mexe com o imaginário e os desejos de muitas jovens, uma tradição de séculos. Entretanto, em meio à pandemia de covid-19, festas e comemorações têm sido canceladas, adiadas ou reinventadas.

A jovem Sofia Macedo da Silva e Silva, de Manaus, capital do Amazonas, completou 15 anos de uma maneira diferente. Nascida com fissura labiopalatina, ela esteve em Bauru (SP) no dia de seu aniversário, 14 de dezembro, para atendimento no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho) da Universidade de São Paulo (USP), onde faz tratamento desde o primeiro ano de vida.

“Esse aniversário pode até não ser aquele idealizado, mas não deixa de ser especial. Afinal, é uma vida aqui dentro do Centrinho, com muitas vitórias”, comemora a mãe, Michelle Amaral da Silva, 37, atualmente dona de casa. “Nunca faltamos a um atendimento. Todo o esforço vale a pena. O sorriso da Sofia é a maior recompensa”, afirma.

‘Quero ajudar outras crianças’
Vaidosa, Sofia adora fazer maquiagem, colorir livros de desenhos e assistir vídeos no celular. Ela conta já ter sofrido bullying na escola por volta dos sete anos de idade. “Uma amiga me chamou de ‘nariz torto’. Foi um episódio que me chateou e marcou bastante. Depois ela me pediu desculpa e continuamos amigas”.

Sofia aos 8 e aos 11 anos com a mãe, Michelle, e com Erika Kurimori, paciente reabilitada, ortodontista e mestre em Ciências da Reabilitação pelo HRAC-USP. Fotos: Arquivo pessoal

Sofia acaba de concluir o nono ano e, em 2021, iniciará o ensino médio. A jovem revela que seu maior sonho é ser odontopediatra e cuidar de crianças com fissura labiopalatina. “Desde pequenininha, sempre fiquei encantada com as odontopediatras, o jeito que elas cuidavam de mim e toda a preparação para as consultas. Elas me davam desenhos, tinham brincadeiras de apertar a barriga na hora de abaixar a cadeira, bater palma na hora de acender a luz. Eu achava tudo muito divertido. Quando eu parei para pensar, disse: ‘Quero fazer o mesmo trabalho que elas, quero ajudar outras crianças com fissura’. E esse desejo só aumentou”, relata Sofia.

“Acho que até em razão de toda essa vivência no Centrinho, de ter crescido dentro do hospital, meu sonho é fazer faculdade de Odontologia na USP em Bauru, especialização no Centrinho, e, quem sabe um dia, trabalhar no Centrinho ou em Manaus, com pacientes fissurados”.

Dificuldades e pessoas especiais
A fissura labiopalatina e as repercussões dessa condição clínica têm tratamento. O momento da descoberta de uma malformação, entretanto – após o nascimento da criança ou mesmo durante a gestação –, geralmente tem grande impacto para os pais e familiares. E o processo de reabilitação é longo. Conforme o tipo da fissura, pode ir até o final do crescimento e início da fase adulta.

Nesse caminho em busca da reabilitação, Sofia e sua mãe já passaram por situações nada fáceis, que exigiram muito amor, força e perseverança. Por outro lado, também já contaram com o apoio e a bondade de pessoas que consideram especiais.

Sofia no dia do nascimento (14/12/2005) e aos 14 anos, em abril de 2020. Maquiagem é um de seus hobbies. Fotos: Arquivo pessoal

Primeiro aninho sem festa
“Eu nunca sonhei em ser mãe, a gravidez foi uma surpresa na época, eu tinha 22 anos. Estava desempregada e, mesmo grávida, fui convidada para trabalhar como secretária de um médico em uma clínica onde eu já havia trabalhado. Esse médico, Dr. Fabian Sevilla Callejas, cirurgião plástico falecido em 2011, foi muito importante em nossa vida. Quando descobri pelo ultrassom que a Sofia iria nascer com uma malformação, fiquei aflita, chorei muito. Ele me tranquilizou bastante. Disse que era algo simples e que ele mesmo iria fazer a cirurgia para fechar o lábio, o que foi feito quando Sofia tinha sete meses”, lembra Michelle.

Segundo a mãe, Sofia não pegava o peito, tomava leite em um copinho de café, e teve dificuldade para ganhar peso nos primeiros meses. “Eu pensava: ‘Não vou conseguir cuidar dela’. Já é difícil cuidar de uma criança, é uma grande responsabilidade. Ainda mais uma criança com fissura, que precisava de mais cuidados e tudo era diferente. Eu era inexperiente e só não fiquei louca porque a minha irmã e a avó e as tias paternas da Sofia me ajudaram muito”.

Michelle relembra que conheceu o HRAC-USP também por indicação do cirurgião plástico com quem trabalhou. “O Dr. Fabian chegou e disse: ‘Como a Sofia também tem o palato aberto, existe um centro aqui no Brasil que, quando você chegar lá, vai achar que está em outro país, no primeiro mundo, porque tem um excelente atendimento, e você vai continuar o tratamento dela nesse lugar’”.

Sofia chegou ao HRAC-USP com um ano e um mês. Foi sua tia Kezia Macedo quem entrou em contato solicitando agendamento. “Lembro que não comemoramos com festa o primeiro aniversário dela. Tudo era novo para a gente, não sabíamos quanto dinheiro iríamos precisar e o que enfrentaríamos em Bauru. Então economizamos o dinheiro para a viagem. Fomos eu, a Sofia e minha sogra. Entre o atendimento com a equipe de caso novo, exames e cirurgia, ficamos alguns dias na cidade”, conta Michelle.

Pouco tempo depois, quando Sofia tinha um ano e sete meses, o pai faleceu. “No velório, eu olhava para ele, chorava, e dizia que ia amar e cuidar da Sofia por nós dois”. Mais tarde, aos seis anos de Sofia, Michelle casou com o atual marido. “Meu esposo tem ela como filha, dá o sangue por nós duas”.

‘Minha filha é a prioridade’
Michelle recorda que já chegou até mesmo a pedir demissão de emprego para poder se dedicar aos cuidados com Sofia. “Teve uma situação muito triste que nos marcou. A Sofia ainda era bebê e eu trabalhava como recepcionista em uma escola. Tínhamos que vir para Bauru, por conta do tratamento. Perguntei como poderíamos fazer, se eles faziam banco de horas para depois eu compensar. E a administradora simplesmente falou que não, que eu tinha que escolher, ou era minha filha ou o emprego. Eu respondi: ‘É claro que a minha filha é a prioridade’, e pedi demissão”.

“Fico pê da vida quando a Sofia, às vezes, vem com papo que é um empecilho ou que atrapalha a minha vida. Eu digo: ‘Minha filha, não fale isso, você é a minha prioridade, essas coisas fazem parte’”, enfatiza.

Michele conseguiu se formar em Administração. Nas vindas ao HRAC-USP em Bauru, trazia o notebook para estudar e elaborar seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Durante a graduação, fazia estágio e, para complementar a renda, começou a vender trufas de cupuaçu e castanha e lingerie.

“Para as viagens a Bauru, sempre fizemos bazar, venda de rifas, feijoada, churrasco, para poder levar um dinheiro a mais, porque o TFD [auxílio financeiro concedido a pacientes do SUS para despesas com tratamento fora de domicílio] só recebemos depois e também porque, se minha filha pede um milk-shake, por exemplo, não gosto de dizer que não tenho dinheiro para isso. E ela nunca foi de gastar muito”.

De acordo com Michelle, Sofia já passou por cerca de dez procedimentos cirúrgicos no HRAC-USP. “Já teve etapas do tratamento em que chegamos a viajar cinco vezes por ano a Bauru. Atualmente, a média é duas vezes no ano. A última vez havia sido em fevereiro”.

“Por tudo o que já passamos e conquistamos, sempre que encontro alguma mãe cansada, desanimada ou pensando em desistir do tratamento, eu falo: ‘Amiga, se você desistir e não lutar pelo seu filho, quem vai fazer isso? Temos que encontrar forças e seguir’. Graças a Deus, a muita força de vontade, a essa equipe maravilhosa do Centrinho e a tantos anjos que encontramos ao longo desses anos, a Sofia tem obtido uma excelente evolução e está quase finalizando o tratamento. Só temos a agradecer a todos do Centrinho, ao Dr. Fabian, lá atrás, ao Dr. Fernando Herkrath, dentista que acompanha a Sofia em Manaus [graduado pela Faculdade de Odontologia de Bauru e especialista em Ortodontia pelo HRAC-USP], e também à fonoaudióloga Laryssa Lopes [doutora em Ciências da Reabilitação pelo HRAC-USP e presidente do Instituto Yaçuri da Amazônia, centro de fissura em Manaus]”, finaliza.

A fissura labiopalatina
Condição congênita em que há comprometimento da fusão dos processos faciais durante a gestação, a fissura labiopalatina está relacionada a fatores genéticos e ambientais. Apresenta grande variabilidade clínica, podendo envolver desde uma pequena cicatriz labial até fissuras completas e bilaterais, que atingem o palato e são mais complexas. Pode ocorrer de forma isolada, estar associada a outras malformações ou ainda fazer parte de um quadro sindrômico. A prevalência no Brasil é de uma a cada 650 crianças nascidas.

As principais implicações que as fissuras podem trazer ao indivíduo são dificuldade na alimentação, alterações na arcada dentária e na mordida, comprometimento do crescimento facial e do desenvolvimento da fala e audição. Ao longo dos anos, essa condição pode inclusive trazer impactos sociais e também o bullying.

O tratamento é um processo que envolve a atuação de equipe interdisciplinar, das áreas de cirurgia plástica, odontologia, fonoaudiologia, entre outras especialidades, todas indispensáveis à reabilitação, que engloba aspectos funcionais, estéticos e emocionais.

Sobre o HRAC-USP
Fundado em 1967, o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho) da USP é pioneiro em suas áreas de atuação e referência mundial no tratamento e pesquisa das anomalias craniofaciais congênitas, síndromes associadas e deficiências auditivas, com assistência disponibilizada via Sistema Único de Saúde (SUS). O acesso de novos pacientes é por meio da Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde (Cross) da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP), a partir de avaliação inicial em unidade básica de saúde.

Reconhecido como hospital de ensino pelos Ministérios da Saúde e da Educação, o HRAC-USP é também um importante núcleo de geração e difusão do conhecimento e inovações, com programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado), além de cursos lato sensu e de extensão (residências médicas e multiprofissionais, especializações e práticas profissionalizantes), todos gratuitos.

Nesses 53 anos de atividades, o Hospital registra mais de 120.000 pacientes já atendidos (sendo 53.000 ativos), de todo o Brasil, e já formou cerca de 1.600 mestres, doutores, especialistas e outros profissionais em cursos de extensão universitária.

 

(Imagem de capa: Sofia e a mãe, Michelle, no jardim interno do HRAC-USP. Foto: Tiago Rodella, HRAC-USP)

Assessoria de Imprensa HRAC-USP

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